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Que ódio é esse?

O ódio coletivo é sintoma de uma sociedade doente. Por Prof. Heraldo Tovani

Os indivíduos e a sociedade são partes indivisíveis de um mesmo todo e a doença, desvio ou moléstia de um se manifesta como sintoma no outro. Analisar a sociedade sem os seus indivíduos é um erro tão grande como olhar os indivíduos separados de suas respectivas sociedades.

A Sociologia e a História podem nos falar desses sintomas nas sociedades; a Psicanálise nos fala sobre os sintomas no indivíduo.

A sociedade, composta por indivíduos, determina como tais indivíduos vivem, trabalham, pensam, sentem, amam ou odeiam e, por outro lado, simultaneamente sofre a ação destes indivíduos. Em outros termos, a sociedade faz o indivíduo que faz a sociedade.

O ódio é um sentimento individual mas, quando compartilhado em larga escala, torna-se um fenômeno social. É o sintoma, no indivíduo ou no grupo, da doença da sociedade.

Entretanto, esse ódio só pode se tornar amplamente compartilhado se houverem indivíduos predispostos a alimentá-lo; e tal ódio só se multiplica se houver na sociedade fatores históricos e sociais que a predisponham a ele.

O ódio dos indivíduos já foi amplamente estudado pela Psicanálise. Destacam-se os estudos de Sigmund Freud e de Jacques Lacan.

O ensino clássico de Freud nos mostra que a busca pelo prazer (o princípio do prazer) é o combustível de nossas formulações mentais. É na busca erótica pelo prazer que nossa energia libidinal nos molda nesta ou naquela forma de ser. É por ela que nos inventamos a nós mesmos.

É, como explica Lacan, “essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá chamar de seu eu” (A Agressividade em Psicanálise -1948- pg. 116).

Os sintomas psicológicos ou psicóticos são deslocamentos dessa energia libidinal. Nossa energia libidinal, que havia se fixado em determinado ponto de nosso aparelho psíquico e lá gozava do prazer de sua realização, por algum trauma viu-se obrigada a se deslocar. É o que pode acontecer, por exemplo, quando de um evento traumático como um rompimento amoroso, uma morte súbita, um acidente ou até, por vezes, por um fato menos intenso, mas que desperta um questionamento de nossas certezas já construídas, como uma notícia do jornal, uma nota baixa em uma prova ou um simples sonho desestabilizador.

Nesse momento de desestabilização, nossas energias libidinais buscam uma nova fixação. Buscam, via de regra, algum ponto já construído em nossa história emocional. Um lugar onde já havíamos estado e desfrutado de prazer. Por isso, em momentos de traumas, buscamos em nossa história um momento em que éramos felizes e não sabíamos. Todos nós, em algum momento já passamos por isso. Se a nossa educação emocional e cultural, promovida pelo ego, é ampla, crítica e íntegra, se esse “território” é amplo poderemos, frente ao trauma, realocar essa energia libidinal em algum ponto suportável e nos equilibrar emocionalmente. Caso nosso “território” seja estreito, nossa formação cultural e emocional débil ou falha, essa energia libidinal vai buscar sua fixação em alguma estrutura da qual já havíamos evoluído e já havíamos recusado como ultrapassado e que retiramos de nosso ego e já não o reconhecíamos como moralmente aceitável. São, como nos diz Freud, “fixações das quais o ego se havia protegido, no passado, por meio de repressões.”, mas, devido as opções limitadas de um ego pouco educado, lá é onde a libido consegue gozar. Pelo princípio do prazer, é lá que a libido se fixa, no passado. Passa, então, a se valer de máximas como a que diz que “antigamente é que era bom”. Começa a nascer aí uma recusa ao presente e ao futuro e um ódio a todos aqueles que buscam romper com o passado, local de seu gozo.

Freud, no seu texto clássico “O mal-estar da civilização”, opõe, de um lado o ódio e, de outro, a cultura. Cultura seria uma força de Eros (Deus do Amor) e o ódio a maior força de obstáculo à sua realização. O ódio, no entanto, é uma força primordial, anterior ao amor, que nasce da falta provocada pela negação ao princípio do prazer. Na criança, a recusa do seio materno e os complexos subsequentes de castração e de Édipo decorrem dos sentimentos de ódio provocados pela falta ou pela ausência.

Jacques Lacan aproxima o conceito de ódio ao mito de Kakón. Em Hesíodo, Pandora aparece descrita como Kalón Kakón, que em grego significa Belo Mal. Kakón seria o mal. Pandora, como sabemos, é a bela mulher enviada por Zeus que abriu a caixa de onde saíram todos os males da humanidade. Para Lacan, Kakón é uma construção que fazemos ao odiar no outro o ódio que temos em nós. Baseado no caso Aimée, sua paciente que atacou uma atriz num teatro de Paris, Lacan desenvolve que “a mesma imagem que representa seu ideal é também o objeto de seu ódio”, uma vez que a paciente era, ela também, aspirante às artes, com sua pretensão à literatura. Os diversos aspectos de sua vida alucinada que fantasiava delírios de perseguição e perigos despertava o ódio a si que ela projetou em sua vítima. “Quem eram os inimigos misteriosos que pareciam estar perseguindo-a?” (pg. 146). Aimée “leva a cabo o ato fatal de violência contra uma pessoa inocente, na qual vê o símbolo do inimigo interior” (LACAN; pg. 146).

Kakón, o monstro que reflete no outro o mal que há em si.

Há, portanto, uma predisposição primordial ao ódio no indivíduo. Esse ódio, enquanto sintoma, decorre de um ego estreito e repressor que cria em si uma auto recusa que é projetada no outro. “não é outra coisa senão o Kakon de seu próprio ser que o alienado procura atingir no objeto que ele fere” (LACAN; pg. 176).

Uma sociedade sadia, com valores humanos, solidários, de acolhimento, com educação crítica e universalizada coíbe, no indivíduo, a proliferação do ódio. Quando há uma forte catarse benevolente no corpo social da comunidade forma-se uma força que Jung chamava de Inconsciente Coletivo, Lacan chamava de Grande Outro e Freud de Superego que faz convergir para o indivíduo esses valores que a sociedade cultiva. Infelizmente, o contrário também é verdadeiro: uma sociedade doente manifesta os sintomas de sua doença no indivíduo.

Em uma sociedade que sofre com o crescimento das manifestações de ódio, como a nossa, na atualidade, há que se buscar, nela também, sua predisposição ao ódio.

Na sociedade brasileira podemos recuperar, em seu passado, momentos traumáticos que achávamos superados, mas que sobrevivem latentes em um inconsciente social.

Gilberto Freire, em Casa Grande & Senzala, resgata uma patologia psicótica na formação de nossa sociedade, representada pelo sistema escravocrata. Sistema este que cobre 3/5 de nosso passado oficial. Ou seja, dos 500 anos, desde a chegada dos portugueses, mais de 300 anos foram sob o regime escravocrata.

Em uma tão longa permanência, não haveria como a escravidão não deixar marcas profundas em nossa formação.
Gilberto Freire aponta para uma formação sadomasoquista, na relação senhor – escravo, construída na longa permanência do sistema de escravidão, que nos formou. Uma formação sádica e masoquista que se esconde em nós, enquanto povo. “Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político” (FREIRE, pg.114).

Imaginemos o negrinho, filho de escravo, em interação lúdica com o sinhozinho, filho do Senhor. (Milthon Nascimento, por exemplo, relata a permanência desta relação, filha da escravidão, em sua belíssima canção “Morro Velho” que indico fortemente àqueles que ainda não a conhecem). Esse negrinho, em interação lúdica com o filho do senhor, serve de estímulo à formação sádica de mandonismo, onde o sinhozinho exercita ser senhor e o negrinho, escravo. Na brincadeira de cavalinho, o negrinho será o cavalo; na brincadeira de caçada, o negrinho será a caça; na brincadeira sexual, o negrinho era o objeto do sinhozinho. “Através da submissão do moleque, seu companheiro de brinquedos e expressivamente chamado levapancadas, iniciou-se muitas vezes o menino branco no amor físico” (IDEM; pg. 112).

Ou era isso, ou, para o negrinho, seria o trabalho duro da lavoura, a labuta nas minas, o sol a sol do trabalho similar ao dos animais de carga. Frente a rudeza e a estupidez do trabalho regular dos engenhos, da lavoura ou das minas, a submissão ao sinhozinho era quase um acalanto, um carinho, um gozo. Frente a indigência do trabalho diário, a atenção do sinhozinho era para o escravinho a singularidade que, sabia, nunca mais teria.

O prazer de sofrer a atenção cruel e sádica do filho do senhor pode ter sido o gatilho do masoquismo, identificado por Gilberto Freire.

Assim crescemos como povo-nação, filiados à certeza de nosso mandonismo sádico e na nossa subserviência masoquista.

A abolição do trabalho escravo provocou um desequilíbrio patológico social das relações sádicas de mando. Seu sintoma foi o racismo. O ódio de raças.

O senhor de escravos, contudo, continuou mantendo seu status de senhor, de coronel, de mandatário, enquanto o escravo, o pobre e o imigrante se unificaram em uma única categoria: trabalhadores. O negro, inserido na categoria de trabalhador, foi, mesmo aqui, transformado em lumpesinato, escória, inferior. Nós, brancos e mulatos, preferimos nos colocar ao lado do senhor e sadicamente aprofundamos a exclusão do negro, pela humilhação, pelo deboche, pelo racismo, pelo gozo de nos vermos superiores. Para manter essa posição sádica e mandonista nos submetemos à hierarquia social. Em nome de nosso gozo, aceitamos ser preteridos da política, da economia e dos ganhos do capital. Abrimos mão da democracia e da participação na coisa pública. Em nome do gozo, sofríamos. E, sofrer em gozo é masoquismo.

Nós, do sul e sudeste do país, juntamente com a abolição do trabalho escravo, experimentamos um desenvolvimento econômico imenso e, mesmo sem compartilhar dessa enorme riqueza produzida, vimo-nos a nós mesmos como superiores.

O Norte e o Nordeste, majoritariamente negro e pobre, serviram a nós do mesmo modo que o negrinho serviu ao sinhozinho. Serão eles, nordestinos e nortistas, que sofrerão de nosso sadismo social. Serão eles os nossos trabalhadores mais desclassificados, nossas empregadas domésticas, serventes de pedreiro, nossas prostitutas, lavadeiras, faxineiras… Serão aqueles em quem nos miraremos para neles enxergarmos a nossa superioridade.

Se esse equilíbrio perverso for quebrado, fatalmente experimentaremos diversos e cruéis sintomas individuais e sociais.
E foi, de fato, o que aconteceu em 2003. A cadeia hierárquica de comando foi quebrada. Numa inversão única em nossa história, um nordestino, pobre, da classe trabalhadora assume a posição máxima da política nacional. Posição até então somente assumida por representantes dos senhores. Sua proposta política era de inclusão social e de inserção dos ex-escravos nas escolas, nos supermercados, nos shopping Centers, nos aviões, nas praias… Conviveriam, em condições iguais, com brancos, paulistas, sulistas e classes médias.

O trauma deslocou a libido nacional.

Uma parte da classe média, aquela melhor talhada pela cultura, realocou, num primeiro momento, seu sadismo tradicional para um lugar de orgulho nacional, tendo-se em vista o enorme salto que o Brasil experimentou nesse período em suas relações internacionais. Os índices econômicos favoreciam também um discurso pactuado na sociedade em favor de algo nunca visto: um projeto de país.

Porém, uma outra parte da população, não tão expressiva em número, mas exponencialmente mais expressiva em capital, sentiu o incômodo típico dos psicóticos e começou a alucinar e a promover alucinações coletivas. O desvio de sua energia libidinal sádica construiu seu monstro Kakón, com a dimensão equivalente ao seu poderio econômico e medo político. E como, nas palavras de Lacan, Kakón é o ódio de si projetado no outro; e como “o ato agressivo desfaz a construção delirante” (LACAN; pg. 113), aquele governo passou a ser bombardeado diariamente com acusações de mal feitos que os acusadores, eles próprios, se acostumaram, por décadas, a fazer.

Em pouco tempo, a energia libidinal ainda mal acomodada em um lugar novo e ainda a ser melhor construído, desloca-se para um ponto retrógrado do inconsciente nacional e o sadismo originário aflora em manifestações de ódio. Principalmente pela facilidade de manifestação, favorecida pelas redes sociais.

Não é por outro motivo que as postagens dos partidários das posturas de ódio (que conhecemos bem) sempre se manifestam com xingamentos e palavrões. São as manifestações sexuadas a partir daquele lugar onde eles gozam. “Viado”, “corno”, “vai tomar no cu”, “vão se foder”, são gozos de expressões que remetem sempre ao seu sexo reprimido. Manifestações de uma libido alocada numa posição distante da cultura, lá onde o ódio faz gozar.

A construção de um espaço político diferenciado e de inclusão, dentro de uma estrutura política centenária de exclusão e de exclusivismo de uma só classe social, somente poderá ser realizada com a equivalente construção de estruturas do ego que a suportem e a adotem como uma posição de gozo. Caso contrário ele ruirá rapidamente frente ao simples questionamento: o que você prefere, igualdade ou superioridade sobre o outro?

Não é outra coisa a afirmação de que Lula é analfabeto (eu não sou, logo sou superior), Lula é nordestino (eu, sulista, sou superior), de que petistas são mortadela, alimento característico do pobre, frente ao qual eu sou superior.

As posturas de ódio promovem uma descarga fenomenal de energia libidinal. Elas, porém, não curam. São sintomas devastadores que invariavelmente desembocam em fatalidades, violências, fanatismos. Pois os que odeiam, não odeiam o objeto ao qual miram seu ódio, odeiam a si próprios e querem destruir no outro o ódio que têm em si. Dessa forma, assim que destruírem um objeto de ódio, outro aparecerá. Ora será o PT, ora a pedofilia, ora Paulo Freire, ora as obras de arte, num contínuo e infindável rosário de ódio.

Como já demonstrou Freud, o ódio é o avesso da cultura. Nesse sentido, comprar a briga contra os militantes do ódio usando como arma um contra ódio, só faz fortalecer esse sentimento.

Contra o ódio, cultura!

 

 

 

Prof. Heraldo Tovani

Publicado inicialmente em Brasil247

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