Entidades pedirão a reconstrução de monumento no Jacarezinho
Após a derrubada, pela Polícia Civil, do monumento em homenagem aos 28 mortos na chacina do Jacarezinho, ativistas, vereadores e entidades ligadas aos direitos humanos repudiaram o ato e pedirão a reconstrução do memorial.
O advogado João Tancredo, representante das famílias de 14 vítimas, disse que não havia nenhuma decisão judicial ou administrativa para a retirada do monumento.
“Não pode ser o meu julgamento dizendo o que é ilegal e o que é legal. Eu tenho que ter uma resposta da justiça e se a justiça diz que é ilegal, eu tenho que tomar, como autoridade, providências. Não há ilegalidade nenhuma na colocação de um memorial às vítimas da chacina, lembrando que foi a mais letal do Rio de Janeiro”, disse.
O monumento foi inaugurado na sexta-feira passada (6), para homenagear as vítimas da Operação Exceptis, da Polícia Civil, ocorrida no dia 6 de maio do ano passado. A construção consistia em uma parede com cerca de 1,7m de altura e 1,5m de largura, pintada de azul, onde foram fixadas placas com o nome dos 28 mortos, incluindo o policial André Leonardo de Mello Frias. O memorial não atrapalhava a circulação de pedestres nem de veículos.
O memorial tinha uma placa com os dizeres: “Homenagem às vítimas da chacina do Jacarezinho. Em 06/05/2021, 27 moradores e um servidor foram mortos, vítimas da política genocida e racista do estado do Rio de Janeiro, que faz do Jacarezinho uma praça de guerra, para combater um mercado varejista de drogas que nunca vai deixar de existir. Nenhuma morte deve ser esquecida. Nenhuma chacina deve ser normalizada”.
Na tarde de quarta-feira (11), policiais civis entraram com blindados na comunidade, na zona norte do Rio de Janeiro, e derrubaram a pequena construção, após retirar as placas com pé-de-cabra e depois quebraram o memorial a marretadas. A polícia alegou que o monumento não tinha autorização da prefeitura e fazia apologia ao tráfico de drogas, além da fixação do nome do policial “junto com o nome dos traficantes” não ter sido autorizada pela viúva.
O advogado João Tancredo informou que se reunirá na próxima semana com entidades que atuam no Jacarezinho e com familiares das vítimas para discutir as ações necessárias para pedir a reconstrução do memorial.
“A gente tem que começar a dar um fim a isso, porque arbitrariedade não interessa a ninguém. Criminosos deve estar sujeito ao processo legal, e não à execução sumária. A autoridade tem homenageado muito escravocratas, ditadores, com monumentos e até vias públicas, e nega aos enlutados pela violência um espaço para lembrar seus mortos”, disse.
A vereadora Thais Ferreira se reuniu ontem (12) com representantes de organizações sociais e informou que irá propor um projeto de lei para a construção de um novo memorial, no mesmo local do que foi destruído.
“Esse memorial é para as famílias, para a gente ter essa dignidade humana do luto garantida para todas as pessoas. A gente também já estava fazendo um mapeamento, desde quando a chacina aconteceu, sobre a questão de como o Jacarezinho está entregando políticas públicas para crianças e adolescentes, já que a operação teve essa justificativa, de colocar o aliciamento de crianças e adolescentes como o motivo para que a operação acontecesse”, disse.
De acordo com Thais, presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Câmara de Vereadores, o levantamento até agora aponta para a falta de políticas públicas voltadas para a infância e juventude. Ela adiantou que vai convocar uma audiência pública para debater a questão com os movimentos sociais e famílias de vítimas de violência do Jacarezinho.
De acordo com a secretária Municipal de Conservação, Anna Laura Freire, a prefeitura não teve conhecimento da construção do memorial e não foi consultada sobre a derrubada.
“A Secretaria de Conservação desconhecia esse monumento, nada passou por nós, não temos ciência de nada, nem de que foi colocado nem que a polícia retirou. Não temos nenhum acesso a isso, não sabemos de nada. Foi uma operação policial, nada tem a ver com a gente”, disse.
Repúdio
Entidades de direitos humanos se manifestaram em repúdio à destruição do memorial. A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio de Janeiro (OAB-RJ) lembrou que a operação na comunidade foi a mais letal registrada no estado e que 24 inquéritos para apurar as circunstâncias das mortes foram arquivados.
“O memorial propunha a crítica sobre o motivo de tantas pessoas morrerem, ao mesmo tempo em que reafirmava a obrigação do Estado na proteção do direito à vida e do devido processo legal. Ignorar esse fato e classificá-lo como apologia ao crime são iniciativas incompatíveis com o Estado democrático de direito”, disse.
Nota pública assinada pelo GT Interinstitucional de Defesa da Cidadania, composto por 11 entidades, entre elas o Ministério Público Federal, as defensorias públicas da União e do Estado do Rio de Janeiro, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, o Fórum Grita Baixada e a Frente Estadual pelo Desencarceramento, destaca problemas nas investigações do caso Jacarezinho, com dez pontos críticos, incluindo o descumprimento de condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Favela Nova Brasília. Na ocasião, foram mortas 26 pessoas, além de três mulheres, sendo duas menores de idade na época, terem sofrido abusos sexuais, em duas incursões policiais na comunidade do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro, em outubro de 1994 e em maio de 1995.
“O ponto resolutivo nº 16 da sentença estabelece que todas as investigações de mortes, tortura ou violência policial devem ser conduzidas, diretamente, por um órgão independente e diferente da força policial envolvida no incidente e que eventual auxílio seja prestado por força policial, técnica e administrativa alheia ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado. Assim, todo o material probatório produzido no âmbito do inquérito policial a cargo da Polícia Civil deveria ter sido considerado imprestável para a tomada de decisão sobre o início da persecução criminal”.
Mônica Cunha, integrante da Coalizão Negra por Direitos, disse que a destruição do memorial impede mães negras de exercerem um direito básico ao luto pela perda.
“A chacina do Jacarezinho veio mais uma vez comprovar, até pela proximidade do dia 13 de maio, que essa abolição não existiu, que essa liberdade ainda não é para nós, nós não somos um povo livre, ainda continuamos na luta, mais de 500 anos buscando esse aquilombamento e essa liberdade. Ter destruído essa homenagem é ter assassinado novamente todos os filhos dessas mulheres. O Estado arranca nossos filhos, dizima a nossa família e não deixa a gente ter o direito do luto e nem da memória”, disse.
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