Pesquisa aponta aumento do racismo nas abordagens policiais no Rio
De volta às ruas do Rio de Janeiro depois de 20 anos, a pesquisa Elemento Suspeito indicou o agravamento do racismo nas abordagens policiais e, por consequência, em todo o ciclo da justiça criminal. O primeiro levantamento, coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), foi publicado em 2003 e na edição divulgada hoje (15) recebeu o subtítulo Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro.
Os dados apontam que, apesar de os pretos e pardos somarem 48% da população do Rio de Janeiro, 68% das pessoas abordadas andando a pé e 71% no transporte público são negras. Além disso, 17% já foram paradas mais de 10 vezes e 15% de seis a dez vezes. Entre os que tiveram a casa revistada pela polícia, 79% eram negros, bem como 74% dos que tiveram um parente ou amigo morto pela polícia.
De acordo com a cientista social Silvia Ramos, coordenadora do Cesec, os novos dados são “absolutamente impressionantes” e apontam para a abordagem sempre das mesmas pessoas, gerando um ciclo vicioso no sistema de justiça.
“A abordagem é o começo de um mecanismo da área da justiça criminal. A pessoa começa sendo abordada, os abordados são mais presos em flagrante, que são levados à delegacia e são indiciados por delegados que confiam na palavra daquele policial, de que aquele menino negro da favela fazia parte de uma quadrilha criminal. Na justiça são os mais condenados e assim nossas cadeias estão cheias de jovens negros”.
Para a pesquisadora, existe uma cultura racial nas atividades policiais e ela começa com as abordagens e revistas constrangedoras.
“Quando a polícia aborda uma pessoa, às vezes faz uma revista corporal: mão na parede, abre as pernas e apalpa a pessoa à procura de armas e drogas. É um procedimento bastante invasivo e pode ser muito violento, muitas vezes extremamente constrangedor e humilhante. A gente descobriu que mais de 70% desses revistados são negros”.
Silvia destaca que a prática policial de abordar sempre os jovens negros e pobres moradores de favelas, além de racista, é incompetente.
“A polícia acaba não prendendo os criminosos e fazendo desse mecanismo, que é a abordagem policial, o único mecanismo policial. Quando, na verdade, nós sabemos que o que desarticula as quadrilhas e o crime são as investigações, a inteligência, não é o trabalho de estar todos os dias nas ruas da cidade com aquele olho que olha sempre para o menino negro como se ele fosse suspeito e produz com esse menino negro o tempo todo uma prática traumática”.
De acordo com a pesquisadora, as situações de constrangimento e violência policial contra a população negra pioraram nos últimos 20 anos, ao passo que a segurança não melhorou para a cidade como um todo.
Dados
A pesquisa entrevistou 739 pessoas e aprofundou o levantamento com grupos de jovens moradores de favelas, entregadores, motoristas de aplicativos, mulheres e policiais. Com a análise de idade, gênero, cor, classe e território, os pesquisadores identificaram o perfil típico das pessoas abordadas pela polícia. São os homens negros, com até 40 anos, moradores de favela e periferia e renda de até três salários mínimos.
Em todas as situações analisadas, a proporção de negros abordados pela polícia é sempre maior do que a de brancos. Os negros são 74% dos abordados em vans ou kombis, 72% nos carros de aplicativos, 68% andando de moto e 67% em evento ou festa.
Os policiais militares que participaram da pesquisa afirmaram que identificam como “elemento suspeito” o indivíduo com “bigodinho fininho e loirinho, cabelo com pintinha amarelinha, blusa do Flamengo, boné”. Para os pesquisadores, a descrição corresponde à estética dos jovens das favelas e periferias cariocas.
As mulheres são menos abordadas que os homens, com 16% do total. Mas quando mulheres e mulheres trans são paradas por agentes de segurança, elas passam por intimidações e têm suas bolsas revistadas, com os pertences muitas vezes espalhados no chão. As participantes da pesquisa também relataram que policiais costumam procurar drogas nos cabelos trançados no estilo africano, usados por jovens negras e negros.
Na comparação com os dados de 2003, as ameaças nas abordagens passaram de 6,5% para 23% e a experiência de ter uma arma apontada para o indivíduo subiu de 9,7% para 28%. Ter sido parado mais de dez vezes passou de 8,2% para 17% e ter sido revistado subiu de 36,9% para 50%.
Silvia Ramos destaca o impacto psicológico que a rotina policial impõe aos jovens negros, que mudam seus hábitos apenas para evitar as abordagens, evitando inclusive o uso de acessórios como bolsas e roupas que podem se enquadrar no estereótipo do “elemento suspeito”.
“Às vezes a pessoa nem é abordada, mas o medo de ser abordada faz com que ela mude de percurso, que ela nem saia na rua, que tenha medo ou vergonha de sair com amigos ou a namorada porque pode sofrer um procedimento humilhante”.
Sobre as operações policiais, a pesquisa indicou que 80% dos entrevistados acreditam que elas precisam existir, mas 97% discordam que a polícia possa ferir e matar pessoas durante as ações.
A pesquisa completa está disponíveis no site do Cesec.
Respostas
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar informou que a corporação tem a missão central de “defender a sociedade do Rio de Janeiro” e que as ações são “baseadas em protocolos rígidos, treinamentos e orientação”.
“A maioria do contingente policial militar vem das classes de base da sociedade, incluindo as comunidades carentes, o que torna nossos policiais parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam”, informou a Polícia Militar, destacando que “a corporação foi uma das primeiras instituições públicas do país a ser comandada por um negro e hoje mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes”.
A Polícia Civil informou que não trabalha com abordagens e ostensividade, que são o foco da pesquisa, exercendo a função de polícia judiciária, “que realiza investigações baseadas em Inteligência e não na raça, credo ou qualquer outra característica”.
Casos recentes
A violência das forças de segurança contra pessoas negras se mostra em episódios recentes registrados no Rio de Janeiro. Ontem (14), o vendedor de doces Hiago Macedo de Oliveira Bastos, de 22 anos, foi baleado e morto por um policial militar fora de serviço, em frente à estação das barcas de Niterói, na região metropolitana.
No dia 6, o entregador Yago Corrêa de Souza, de 21 anos, foi preso após comprar pão no Jacarezinho, na zona norte da capital. Ele foi acusado do crime de tráfico de drogas e ficou dois dias detido, estando ainda em liberdade condicional.
No início do mês, o trabalhador Durval Teófilo Filho, de 38 anos, foi morto a tiros por seu vizinho, o sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, quando tirava a chave da mochila para abrir o portão da própria casa, no bairro Colubandê em São Gonçalo, na região metropolitana. O sargento alegou que confundiu o vizinho com um assaltante.
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